quarta-feira, 22 de julho de 2009

O cheiro do ralo

Imagine um filme de quase duas horas de duração onde nada importante acontece, a situação inicial é repetida à exaustão e tudo se passe quase unicamente em um único cenário. Parece chato? Coisa de filme francês dos anos 60? Ah, mais um detalhe: o protagonista é francamente antipático, metódico, uma pessoa muito desagradável de conhecer. A descrição talvez não ajude muito, mas o fato é que O cheiro do ralo é um dos melhores filmes brasileiros lançados nos últimos tempos.

É estranho recomendar um filme com tais predicados, da mesma forma como gostar dele. Mas esta segunda incursão do paulista Heitor Dhalia na direção é um sopro de vitalidade e renovação no cinema nacional, cuja qualidade vem crescendo gradativamente desde que Central do Brasil encantou e arrebatou platéias pelo mundo afora há dez anos. Depois de estrear em 2003 com um filme que dividiu radicalmente as opiniões da crítica – Nina, adaptação livre de Crime e castigo, de Dostoievsky – ele parece ter encontrado o tom certo de seu ofício. Particularmente não gosto dessa sua primeira obra, mas reconheço nela algumas qualidades estéticas que contribuem para sua apreciação, sobretudo a direção de arte e o universo gótico, conferindo-lhe uma atmosfera de pesadelo urbano. Desta vez, Dhalia conseguiu aliar forma e conteúdo de maneira admirável, construindo uma fábula que, nas entrelinhas, pode ser lida como um retrato atual do nosso país. Aqui, ele volta a trabalhar em uma adaptação literária – no caso, o romance homônimo escrito por Lourenço Mutarelli, que já havia assinado a concepção visual de seu trabalho anterior.

Lourenço é um negociante de produtos usados que desenvolve uma relação algo sadomasoquista com os clientes que o procuram. Trata-os com frieza, comprazendo-se em humilhá-los e explorá-los em sua miséria aparente. Amoral até a medula, se acha acima das leis, usando-se de sua confortável condição financeira para obter o que quer Ao mesmo tempo, desenvolve um desejo obsessivo pelas nádegas de uma garçonete, que trabalha na lanchonete que ele freqüenta. É quando sua vida muda, ele se surpreende dominado pela paixão e vai à luta para conquistar a moça, certo? Errado. Lourenço nada faz para concretizar seu intento. Muita coisa vai acontecer até ele chegar lá. Nada muito edificante. Mas quem espera uma redenção pelo amor vai se decepcionar. Aliás, não é uma história muito fácil de ser digerida. Os mais sensíveis provavelmente se sentirão ofendidos.

O Lourenço de O cheiro do ralo é um parente contemporâneo do Paulo Honório de São Bernardo, romance de Graciliano Ramos escrito em 1934. Sua lógica é fundamentalmente materialista: as pessoas só têm valor a partir de suas posses e do que podem produzir. Assim, coisificando seres humanos, ambos levam uma existência espiritualmente ressequida, meros fantoches do capitalismo selvagem, incapazes de sentir além das aparências. Tanto que os personagens periféricos simplesmente não têm nome, são apenas "o homem do olho de vidro" (objeto que acaba tendo uma importância fundamental na construção da narrativa), "o homem do gramofone", "a mulher casada". No lugar da Madalena de Graciliano, temos a garçonete que, inutilmente, tenta chamar o negociante à realidade, dizendo que "daria de graça o que ele gostaria de comprar". Nem assim, contudo, se derrubam as barreiras que o impedem de humanizar-se. Não existe amor. Existe o lucro. O resto é perfumaria. Ou a fedentina que exala do ralo.

Na pele de Lourenço, Dhalia teve a felicidade de contar com um Selton Mello em estado de graça, compondo talvez o melhor tipo de sua carreira. Ele sempre foi bom ator, e deixou isso claro em muitos outros filmes recentes (Lisbela e o prisioneiro, O Auto da Compadecida, Lavoura arcaica), mas aqui atinge um nível de interpretação próximo da perfeição. Todo o elenco está muito bem, desde os quase figurantes clientes da loja de Lourenço, cada qual compondo com humana simplicidade a existência quase indigente de suas vidas (e entre os quais há nomes conhecidos, como Abraão Farc e Antônio Pompeo). Mas o outro grande destaque individual fica por conta de Sílvia Lourenço, como a garota viciada. Paula Braun, a musa calipígia cobiçada pelo antiquário, estréia no cinema dosando ingenuidade e charme na medida certa. Por sinal que sua beleza não se restringe à referida anatomia. Há ainda participações de Alice Braga e do próprio Mutarelli, como o segurança da loja.

Uma pena que o roteiro, escrito a quatro mãos entre o diretor e Marçal Aquino, cometa o erro de não sair do lugar, o que pode irritar quem não conhece o livro. Não há um momento em que a narrativa sofra qualquer virada, vai na mesma cadência até o final. A excessiva repetição das atitudes de Lourenço pode irritar e cansar os telespectadores. E a história poderia ter uns bons vinte minutos a menos. Mas isso é só um detalhe que não chega a comprometer o conjunto. Todas as outras escolhas são perfeitas: excelente direção de arte, diálogos rápidos e precisos, com direito a falas antológicas ("Eu envelheceria ao lado daquela bunda"; "O homem criou o lixo para ocupar os desocupados"), trilha sonora contagiante e algumas cenas memoráveis (Lourenço literalmente prostrado no chão do banheiro aspirando o cheiro que sai do ralo; o tratamento dispensado a um encanador que vai tentar resolver o problema; a solução final). Muito assemelhado às produções independentes norte-americanas, o filme tem forte potencial cult.

Atualmente, Heitor Dhalia prepara o lançamento de À deriva, que conta com o astro francês Vincent Cassel no elenco.

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