quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Calígula

Em 2009 celebra-se o aniversário redondo de vários clássicos do cinema, desde os 70 anos de Um cão andaluz de Buñuel, marco do surrealismo nas telas, até os 10 de Beleza americana, para mim o grande filme do começo do século XX, passando pelos cinqüentenários de Ben Hur e – por que não? – Plano 9 do espaço sideral. Não esquecendo os 20 anos de Cinema Paradiso, que me fez chorar a cada uma das oito vezes em que o assisti. Entre tantos festejos, um passa quase despercebido. São as três décadas de Calígula, que as novas gerações talvez só conheçam pela capa azul da edição em DVD, mas que causou grande polêmica quando de seu lançamento e marcou sua época, ainda que por vias tortas.

Calígula é um filme bastardo, renegado até por seu roteirista, o polêmico escritor italiano Gore Vidal, autor do romance original que serviu de base para a história, que pediu que seu nome fosse retirado dos créditos, indignado com os excertos de sexo explícito impostos pelo produtor, Bob Guccione, dono da revista Penthouse. Na verdade, esses excertos foram determinados posteriormente por Guccione, que achou o material inicial leve e comportado demais. Assim, o que seria apenas um épico histórico sobre a vida do imperador Calígula, o mais enlouquecido dos césares romanos, transformou-se no mais sofisticado pornô da história, uma saga biográfica repleta de bizarrices, taras e closes sexuais, com algumas cenas que se tornaram clássicas. Uma das mais lembradas é aquela em que o imperador invade uma festa de casamento e, após levar os noivos para a cozinha, sodomiza o rapaz com o punho, bradando, no momento do ato: "Em nome de Roma!" Outro momento de violência ocorre quando um soldado da guarda pretoriana tem o pênis amarrado e é forçado a beber vinho até ficar com o estômago dilatado para, em seguida, ter a barriga perfurada por uma lança. Tudo gratuito, sem motivo, só para chocar. Apesar de todos os excessos de violência a que se assiste hoje em dia, principalmente em filmes de pseudo-terror, que celebram a sangueira explícita e a tortura, são imagens que ainda chocam e causam desconforto a quem vê o filme pela primeira vez (e mesmo para quem o revê).

A verdade é que o filme, rodado com ares de superprodução, não consegue disfarçar sua pobreza cenográfica, em que pese os suntuosos ambientes recriados em estúdio por Danilo Donati, um especialista no assunto. Toda a história se desenvolve em interiores e sempre em planos fechados. Há duas ou três cenas passadas em exteriores, mas rápidas e quase no final do filme. O elenco contou com o reforço de 13 modelos da revista Penthouse, especialmente convidadas pelo produtor Guccione; elas se revezam nas cenas de nudez e aparecem com destaque na seqüência mais famosa, a da grande orgia final, que se tornou antológica. O elenco, aliás, é uma atração à parte, contando com a presença de artistas renomados da Royal Shakespeare Theatre Company, como Helen Mirren e o lendário John Gielgud, além de Peter O’Toole. Mas é Malcolm McDowell quem brilha no papel-título, imprimindo ao seu Calígula uma dose de loucura na medida exata, sem cair na caricatura. No entanto, o ator, que havia feito sucesso anos antes com Laranja mecânica, parece ter sofrido da maldição do filme, já que sua carreira foi ladeira abaixo depois deste épico pornô e nunca mais se acertou.

O filme também tem história na televisão brasileira. Em 1992, a Rede OM, atual CNT, programou a exibição de Calígula para duas noites em rede aberta, em virtude de sua longa duração (156 minutos). A primeira parte foi apresentada na quinta-feira anterior à Sexta-Feira Santa (!). Por conta do feriado religioso, a segunda parte foi anunciada para o sábado (de Aleluia!!! – será que alguém confundiu o termo "épico" com "religioso", como se fosse sinônimo da vida de Cristo?), mas não chegou a ir ao ar: sua apresentação foi embargada na Justiça e jamais liberada. Nas semanas seguintes, a emissora mostrou uma chamada do filme com a explicação para o cancelamento da exibição e chegou a veicular um documentário mostrando a luta para liberar a atração. Na época, reabriu-se o debate acerca da censura na televisão brasileira e os limites concedidos às concessionárias de radiodifusão. Na ocasião, escrevi uma carta para a revista TV Programa, do JB, criticando a decisão judicial. Por pouco a OM não perdeu sua concessão. Mas o fato serviu para que Calígula, então já esquecido, voltasse a ficar no centro dos holofotes e fosse redescoberto – ou, no meu caso, conhecido.

A edição em DVD traz um ótimo making of de 55 minutos, feito na época das filmagens, e mostra detalhes de bastidores e entrevistas com os principais envolvidos. O barato é acompanhar a seriedade com que o projeto era tratado: todos falam de Calígula como se estivessem rodando o grande épico do século XX. A produção foi cercada de cuidados, com jornalistas sendo barrados na entrada dos sets de filmagem. Imperdível. Aproveite: o filme pode ser comprado em qualquer Americanas da vida, pela bagatela de R$13.

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