sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Festival do Rio - estafa cinéfila

Aos amigos que têm a boa vontade de acompanhar meu espaço de vez em quando, peço desculpas, mas a maratona vem me exaurindo. Já compromete até a atualização das críticas e mesmo a qualidade das mesmas. A seguir, os filmes que vi na quarta-feira, dia 30, e de um, muito especial, que vi na quinta-feira, 1 de outubro.

DISTANTE NÓS VAMOS – O problema de um diretor realizar uma obra-prima logo em seu primeiro trabalho é que todos os seus filmes seguintes ficarão sempre à sombra da comparação. É o que acontece com Sam Mendes, que estreou com Beleza americana, o grande clássico do final do século XX. Seguiram-se o sóbrio Estrada para Perdição, o fraco Soldado anônimo e, recentemente, o superestimado Foi apenas um sonho. Aqui, ele mais uma vez volta as baterias para a discussão de relacionamento entre um casal, que, no entanto, não chega a experimentar uma crise no casamento, mas aguarda ansioso a chegada do primeiro filho. Resolvem sair em viagem pelo interior dos EUA, indo parar até Montreal, dispostos a escolher o local e a forma mais adequados para a criação do bebê. Um road movie que alterna momentos engraçados com outros ternos e sensíveis, valorizado pela bela fotografia e a delicada trilha sonora. No caminho, que é também uma viagem de autoconhecimento empreendida pelo casal (formado por John Krasinski e Maya Rudolph), vão cruzando com figuras estranhas, destacando-se a mãe que descarta o uso de carrinhos para conduzir os filhos pequenos (quem faz o papel é Maggie Gyllenhaall) e imprime regras alternativas na criação familiar, rendendo as cenas mais engraçadas do filme. O humor reside justamente nos diálogos e na crítica de costumes. O final poético é quase uma antítese do trabalho anterior do cineasta. Curiosidade: no elenco, a presença de Melanie Lynskey, que apareceu no cinema em Almas gêmeas, de Peter Jackson, em 1994, ao lado de... Kate Winslet, esposa de Sam Mendes. Será que foi um pedido da esposa ao seu marido para dar uma força à carreira da amiga (cuja carreira não deslanchou)? * * *

NOLLYWOOD BABILÔNIA – Pouca gente sabe, mas o terceiro maior mercado produtor de cinema do mundo, atrás apenas da indiana e da norte-americana, é a da Nigéria. Você provavelmente nunca viu um filme nigeriano, e assistindo a este documentário fica fácil saber o porquê, e pode-se ter a certeza de que dificilmente irá assisti-los a médio prazo. Infelizmente, não é possível falar em indústria como nas outras duas porque, embora a capital Lagos seja uma das maiores e mais populosas cidades da África, há apenas três salas exibidoras, e nenhuma delas programa filmes locais. Então, para onde vão os cerca de 500 filmes produzidos todo ano naquele país? Para os camelôs e as bancas de jornal. O que a princípio se assemelha à pirataria, e que certamente seria combatido em quase todos os países, aqui se revela como a tábua de salvação e escoamento da produção local. Talvez seja uma boa saída, visto que, a julgar pelo documentário, as vendas alcançam índices bem expressivos e têm boa repercussão entre o público. Este viés ajuda a formar o debate sobre os limites da circulação de um produto artístico. Claro que ninguém ali está interessado em enriquecer, em ganhar dinheiro com cinema. O importante é fazer o filme circular. São vários entrevistados, atores, atrizes, técnicos, roteiristas, mas o principal enfocado é o veterano diretor Lancelot Imasuen, que já realizou quase 160 filmes, e aqui acompanhamos a rotina de gravação de seu 158º. trabalho. Entre um depoimento e outro, a edição insere cenas de diversos filmes nigerianos, todos de péssima qualidade, com som e imagem ruins, efeitos toscos, amadorismo geral. Mas o público gosta desses produtos e os compra avidamente. Muito interessante, me deu vontade de conhecer todos aqueles títulos apresentados (quem sabe no futuro não veremos uma mostra dedicada ao cinema nigeriano no Festival do Rio?). Imperdível para cinéfilos. * * * *

COMO DESENHAR UM CÍRCULO PERFEITO – Após a morte da avó, um rapaz que nutre sentimentos incestuosos pela irmã se reaproxima do pai, um escritor frustrado. Este filme comprova a vitalidade do novo cinema português, que vem marcando presença no festival nos últimos anos, embora dificilmente os filmes sejam lançados por aqui (nem em DVD), com exceção de alguns poucos títulos de Manuel de Oliveira (que, aos 99 anos, é o mais velho diretor em atividade e apresentou, neste ano, seu último trabalho, Singularidades de uma rapariga loura). O diretor Marco Marins realiza uma obra hermética, permeada pela obsessão. O verdadeiro tema do filme é a solidão e as diversas formas a que um jovem se deixa corroer por ela, acumulando perdas, primeiro a avó, depois a mãe ausente, o pai que não se importa com ele, a irmã que o despreza. Seu único motivo de orgulho é saber desenhar um círculo com extrema precisão. O clima sombrio é destacado pela fotografia escura. A cena de sexo entre os irmãos impressiona pela veracidade e sinceridade na entrega do casal. * *

SOMOS TODOS DIFERENTES – Este filme foi-me indicado aqui mesmo no blog em julho e, desde então, assisti-lo se tornou uma obrigação. Consegui agora, numa sessão matinal (a primeira de minha história no festival) na Mostra Geração, com menos crianças do que se poderia esperar (provavelmente a chuva desestimulou a ida das escolas, tradicional público dessa mostra), e que se comportaram muito bem durante a projeção! Conta a história de Ishaam, um menino de 9 anos que apresenta sérias dificuldades de aprendizado. Não consegue se concentrar nos estudos, sempre tira notas baixas e está ameaçado de expulsão no final do ano (o irmão, ao contrário, é o melhor aluno da classe, o que leva a inevitáveis comparações). Porém, possui uma imaginação muito fértil, sempre inventando histórias – nesse sentido, a melhor cena é uma animação que reproduz uma batalha interestelar enquanto o menino tenta resolver uma prova de matemática. Sem saber o que mais fazer com o filho, seus pais resolvem interná-lo em um colégio para crianças especiais, com algum tipo de disfunção, física ou mental. A chegada de um novo professor de Artes trará novos rumos à vida de Ishaam. O filme é uma produção típica de Bollywood, mas com uma preocupação social que eu ainda não tinha visto nos filmes locais. Há muitas canções, mas todas incidentais, servindo como comentário a algumas cenas e ações. O único número musical efetivo acontece na apresentação do professor. Uma verdadeira aula de cinema, do começo ao fim, exemplo de vida e dedicação, com roteiro primoroso, sem nada fora do lugar, todos os conflitos se resolvem de forma consistente, sem soluções fáceis. O menino que interpreta Ishaam é muito expressivo, atuando de forma natural e convincente. Chego mesmo a ousar dizer que é a melhor atuação infantil que eu já vi (na vida real, ele não tem o mesmo problema do personagem). Impossível conter as lágrimas, que me rolaram várias vezes ao longo do filme. Uma obra-prima que infelizmente permanecerá esquecida porque a produção indiana é esnobada em grande parte do mundo (no Brasil então, nem se fala – e olha que acabamos de ter uma novela que fazia referências ao assunto!). Mas deveria ser exibido em todas as escolas públicas do país, deveria passar em horário nobre na televisão. Se a Toda-Poderosa emissora do bairro-que-é-um-jardim realmente estivesse preocupada em melhorar o nível social e educacional do país, divulgaria e exibiria essa pérola. Um filme obrigatório, que emociona e joga luzes na discussão de um problema sério. * * * * *

2 comentários:

  1. Ah! Adorei seu comentário de Taare Zameen Par (erroneamente traduzido para Somos Todos Diferentes)!!!!!!! Fiquei mesmo muitíssimo feliz!

    Agora é a nossa batalha pra trazê-lo ao país - oficialmente. Falta pouco! :)

    abraços

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  2. Vamos juntos nessa luta. Este filme precisa chegar ao grande público.

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