quarta-feira, 17 de março de 2010

Desejo e obsessão

Embora mais veterana, a diretora francesa Claire Denis tem um estilo de filmar que hoje pode ser comparado ao da argentina Lucrecia Martell (do engodo O pântano e do bom Santa menina): planos fechados, ritmo lento, economia de diálogos, roteiro por vezes descosturado. Além disso, utiliza com sobriedade um recurso narrativo que geralmente é relegado a um segundo plano no cinema comercial, o tempo, marcado por silêncios que pontuam a narrativa e preenchem as ações dos personagens, que assim compensam suas poucas falas. Num certo sentido, um tipo de cinema de ação, só que ao modo francês. Sem pressa e com pleno domínio de sua técnica, Denis comanda cada um destes elementos com invejável segurança. E todos eles aparecem combinados de maneira arrebatadora no magnífico Desejo e obsessão.

Em Paris, o médico Leo Semenault (Alex Descas), especialista em pesquisas sobre o comportamento sexual, mantém enclausurada em sua casa a esposa, Cora (Beatrice Dalle, a Betty Blue), que sofre de uma estranha e rara doença e está fora de controle. Paralelamente, um amigo, o jovem médico americano Shane (Vincent Gallo) chega à cidade para sua lua-de-mel. Ele procura Leo para que este lhe auxilie no tratamento da mesma doença que o acomete. Tanto Shane quanto Cora gostam de atacar a dentadas seus parceiros durante o ato sexual, matando-os num ritual canibalístico, numa busca insana do paroxismo do prazer. Uma série de contratempos encaminha este estranho caso de amor rumo a um explosivo desfecho.

É uma história trágica e tristíssima sobre a força do desejo e as pulsões que movem o ser humano a satisfazê-lo, ao mesmo tempo em que precisa controlá-lo ou mesmo abortá-lo em nome de uma suposta normalidade social, mesmo que isso o leve a estados mentais de desequilíbrio e abandono. Pois é o desejo, multiplicado pelo desespero, que arrasta o casal de canibais (Cora e Shane) aos limites de sua sanidade, confrontando-os com as convenções estabelecidas e expondo o sofrimento de ambos em sua inócua tentativa de controlar o que os mantêm vivos.

A magnífica abertura do filme dá uma boa dica do que se verá a seguir. Após uma rápida transa clandestina dentro de um carro estacionado em uma estrada deserta, uma atônita Beatrice Dalle (cuja bocarra sensual nunca esteve tão bem aproveitada no cinema e tão adequada a um papel) caminha por um descampado, enquanto um corte de cena flagra o alvorecer em algum bairro residencial nos subúrbios de Paris, com os primeiros raios de sol refletidos no lago, linda imagem realçada pela primorosa fotografia e emoldurada por uma oportuna trilha sonora. Outra grande cena é a que reúne Cora e uma eventual conquista, um desocupado que invade sua casa, atraído por sua beleza, durante o ato sexual, e onde a bela deixa aflorar seus instintos canibalescos, atacando com todo seu incontrolável desejo o rosto de seu amante. A cena é mostrada na penumbra, mas a tudo se vê, a tudo se assiste, chocado com a crueza da imagem, extasiado com a intensidade de tanto desejo – e, por que não dizer, comovido diante da constatação do fim melancólico que fatalmente aguarda a protagonista. Não há concessões. A seqüência é coroada com uma performance de loucura de Cora, banhada de sangue, andando sem rumo pelo quarto coalhado de tinta vermelha escorrendo das paredes, na boca restos carnais do homem a quem amara até poucos minutos atrás. Assustador e arrebatador.

O restante do elenco também está muito bem, com destaque para Vincent Gallo, bom ator que parece estar se especializando em papéis de personagens marginalizados. É ele o responsável pela cena final de canibalismo, fazendo explodir a tensão de que o filme se carregou até então. De certa forma, seu personagem funciona como uma espécie de contraponto dramático à Cora de Dalle. Enquanto esta foge de casa e luta para buscar o prazer à custa de um preço a ser pago por sua concretização, aquele trava dentro de si uma batalha feroz pelo controle de seus desejos. Neste sentido, o nome do personagem ganha em dimensão simbólica, sendo Shane o cowboy por excelência eternizado no faroeste Os brutos também amam (1953), de George Stevens, e cuja principal característica é a solidão que marca seu relacionamento com o mundo e com as pessoas com as quais se envolve. Não é por outro motivo que o Shane de Denis, embora se mostre sempre carinhoso e apaixonado pela jovem esposa, não consegue consumar a expressão física deste amor. Shane prefere se masturbar – em uma cena, ele se levanta no meio da noite e se tranca no banheiro enquanto do lado de fora a mulher ouve, chorando, os gemidos do marido em sua brincadeira onanista – a dar vazão a seus impulsos e desejos, ferindo assim o objeto de sua afeição. É a impossibilidade de viver este desejo, e de consumá-lo em sua totalidade, que atormenta Shane e o lança num exercício de desespero contido.

A derradeira e sintomática fala da história é um desfecho mais do que adequado e que simboliza de forma compacta todos os desejos experimentados pelos personagens ao longo da narrativa. Uma obra-prima carregada de simbologias, simplesmente espetacular.

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