quarta-feira, 24 de março de 2010

A notável Bettie Page

De vez em quando o Festival do Rio traz filmes relacionados à indústria pornográfica norte-americana. Há alguns anos foi John Holmes – tudo isso é você? Em 2004, foi a vez de Crimes em Wonderland, que enfocava um episódio criminal ocorrido com o mesmo ator. A escolha de 2007 foi a lendária Bettie Page, a mais famosa pin-up (modelo de fotos eróticas) de todos os tempos, especialmente conhecida e cultuada no meio BDSM, uma subdivisão do universo sadomasoquista. Esta produção da HBO tem, além da tradicional qualidade artística que é a marca da emissora, o mérito de simplesmente narrar os fatos, deixando que o espectador tire suas próprias conclusões.

Bettie foi criada no seio de uma família interiorana de sólida formação cristã, era católica fervorosa, freqüentava a missa aos domingos – isso o filme deixa bem claro. Após um casamento infeliz, separa-se e parte para Nova Iorque, onde tenciona se tornar atriz. Passa a trabalhar como modelo de trajes de banho, mas sua vida toma outro rumo ao conhecer o fotógrafo John Willie, que a transforma na mais famosa estrela de uma série de filmes de bondage – técnica sexual que consiste na imobilização total ou parcial do parceiro. A partir daí, Bettie é involuntariamente arremessada no olho de um furacão, combatida por todas as ligas pela decência e saneamento moral então bastante radicais na conservadora sociedade ianque dos anos 50. A questão é que Bettie não via maldade alguma no trabalho que realizava, entendendo-o como o resultado de um dom que lhe havia sido concedido por Deus. Sua carreira entra em declínio após ela se tornar a protagonista involuntária de um crime cometido nas mesmas circunstâncias sugeridas por suas fotos. Não chegou a cair em desgraça, apenas se decepcionou com os rumos que sua vida estava tomando.

O roteiro, escrito pela diretora Mary Herron e por Guinevere Turner, figura conhecida do meio SM (estrelou Clube do fetiche), não se aprofunda nos dilemas morais da personagem, preferindo enfatizar a inocência com que encarava sua tarefa profissional. Há mesmo algumas passagens mal-explicadas (o estupro de que foi vítima e que parece não ter deixado qualquer marca, uma sugestão de abuso paterno). Mas ganha pontos por mostrar toda uma cultura do submundo (não confundir com subcultura) raramente mostrada com seriedade pelo cinema. As representações dos filmes de bondage estrelados por Bettie hoje podem soar ingênuas e até cômicas; são, porém, um registro interessante do tipo de perversão consumida por parcela significativa da sociedade, ao mesmo tempo em que era combatida pelos mesmos que se diziam defensores da moralidade. Como bondager assumido, gostei muito de ver essa "tara" reproduzida de forma séria, permitindo um debate sobre os limites do que pode ser considerado normal na natureza humana. É mesmo o maior tributo que o cinema já prestou a esse fetiche, mostrando-o sem sensacionalismos, procurando inseri-lo em um contexto psicologicamente aceitável. Assim, minha simpatia pelo filme cresceu muito por esta razão.

Quando vi o filme na sessão de abertura do festival daquele ano, no hoje extinto Cine Palácio, fiquei imaginando quantas pessoas, dentre as que estavam na platéia, entendiam ou também curtiam aquele fetiche e até onde elas se sentiam chocadas ou excitadas com as idéias sugeridas. A julgar pelos risos, muito poucas – ou então o bondage realmente é um fetiche que ainda não ousa dizer seu nome. O filme tem um boa reconstituição de época, fotografia caprichada e excelente trilha sonora, composta de sucessos da década de 50. Gretchen Mol tingiu os cabelos de preto para interpretar a personagem.

Bettie Page morreu ano passado, aos 84 anos, em São Francisco, onde vivia como... pregadora evangélica! Mas deixou uma legião de fãs que até hoje cultuam sua imagem nas diversas comunidades dedicadas a ela espalhadas pelo Orkut. Também é possível assistir a alguns filmetes estrelados por Bettie no Youtube.

O filme não passou dos cinemas brasileiros, e, curiosamente, sequer foi exibido pela HBO, que o produziu. Mas saiu em uma caprichada edição dupla pela Casablanca.

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