segunda-feira, 26 de março de 2012

A difícil vida fácil à francesa


Fiquei surpreso ao ler a crítica altamente favorável deste filme, L’Apollonide – Os amores da casa de tolerância, que passou meio sem alarde pelo último Festival do Rio e entrou em cartaz no restrito circuito de arte da cidade. Fiquei animado para conferi-lo, mas aí tive outra surpresa, ainda maior que a primeira, ao ver que o diretor era o mesmo Bertrand Bonello, cujos filmes anteriores não eram bons cartões de apresentação. Para quem não liga o nome à pessoa, Bonello fez antes o chatíssimo O pornógrafo, em que o pobre do Jean-Pierre Léaud, um monumento do cinema francês, passa hora e meia filosofando sobre nada enquanto tenta obter recursos para rodar sua nova produção – pornô, como indica o título; e Tirésia, uma fita muito esquisita sobre um transexual que é seqüestrado e tem os olhos perfurados – a curiosidade é que ambos os papéis eram interpretados por brasileiros, Clara Chevoux e Thiago Teles. Meu ânimo, então, arrefeceu. Pensei: “Poxa, ir ao cinema pra ver um filme do cara que fez O pornógrafo? Haja paciência! Será que vou dormir na sessão?” Mas o cinéfilo é antes de tudo um aventureiro. Então, me enchi de coragem e lá fui eu.
L’Apollonide – Os amores da casa de tolerância conta a história dos últimos dias de funcionamento do prostíbulo homônimo, na Paris do começo do século XX. Acompanhamos o triste e tedioso cotidiano das profissionais que trabalham lá, nenhuma especialmente bonita ou interessante – com duas honrosas exceções, a jovem Léa (Adele Haenel), que diz a que veio logo em sua primeira cena, em que se despe e se mostra linda, saudável e depilada; e Samira, interpretada por Hafsia Herzi, que já conhecia de O segredo do grão do Kechiche, esse sim um grande filme. Mas não temos tempo para conhecer as histórias de vida de cada uma delas, mal sabemos seus nomes, elas mal existem como figuras humanas: apenas estão ali, ocupando seus lugares no tempo e no espaço, existindo simplesmente, já que não é vida o que elas têm no L’Apollonide. Nesse sentido, a protagonista fica sendo Madeleine (Alice Barnole). É dela quem ficamos sabendo um pouco mais. Marcada pela tragédia, Madeleine teve o rosto desfigurado por um cliente, que lhe cortou os cantos da boca e a condenou a passar o resto de sua vida miserável ostentando um sorriso macabro e doloroso. A cena em que ela aparece coberta de sangue, amarrada na cama, berrando de dor e desespero, é uma das mais assustadoras do cinema recente. É dela também outra cena antológica, quase ao final, em que sua personagem literalmente chora lágrimas de esperma.
A sessão a que fui, no pequeno e simpático Cine Jóia, estava lotada, mas algumas pessoas foram saindo lá pelo meio em diante, não sei se aborrecidas com a lentidão da narrativa ou incomodadas pela crueldade da história. Porque, gostem ou não, é preciso reconhecer que o filme é cruel, duro, por vezes difícil. Não há esperança, não há sequer um sopro de escapatória para aquelas meninas: todas estão inexoravelmente condenadas a repetirem um corolário de sofrimentos, sabendo que nada vai mudar – e o fato de todas terem consciência disso torna tudo ainda mais melancólico. Aqui e ali ainda se escuta uma ou outra revelando o sonho de casar com um cliente, de se mudar para outro país, mudar de vida, mesmo sabendo que tudo não passa de ilusão, de combustível adulterado utilizado para seguir com o bonde que não se chama desejo. Não há sequer erotismo no filme, e quem pensar em assisti-lo interessado em detalhes ginecológicos vai desistir nos primeiros 15 minutos. Uma ou outra cena mostra a sugestão de uma transa, outras se demoram um pouco mais, como a seqüência da boneca. Mas o sexo, ali, é podre, sujo, sórdido. Tudo é realçado pelos aspectos técnicos do filme. A direção de arte recria com perfeição o período retratado, reforçado pelos figurinos e a fotografia magnífica. A trilha sonora consegue a proeza de combinar temas alegres clássicos e contemporâneos a cenas de uma melancolia ímpar, acentuando o clima de angústia.
No fim, L’Apollonide – Os amores da casa de tolerância acaba ficando num meio-termo. Está longe, muito longe, de ser a obra-prima vendida pela crítica, mas também está acima, bem acima, dos trabalhos anteriores de Bonello, o que talvez nem queira dizer muita coisa. Vale, porém, uma conferida atenta.

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