segunda-feira, 16 de abril de 2012

Isto é punk rock, bebê!

Imagino que meu comentário vá soar envelhecido e bastante atrasado, pois imagino que muitos dos eventuais leitores já conheciam a figura da qual irei me ocupar. Talvez eu passe atestado de ingenuidade, mas, como parto de um filme para externar minhas impressões, achei que caberia neste blog, mesmo que possa não constituir novidade de maneira geral.

Nunca tinha ouvido falar em GG Allin até me deparar com esse documentário Hated – GG Allin e os Viciados Assassinos, realizado por Todd Phillips em 1994, quase 30 anos antes de ele se tornar famoso pela comédia Se beber, não case e suas duas continuações (sim, há uma terceira parte a caminho!). Embora tenha se especializado em fitas cômicas – tem ainda no currículo Starsky e Hutch, Um parto de viagem e Escola de idiotas, entre outras – , o que se vê aqui está muito mais para um filme de horror.


Em apenas 50 minutos, o diretor consegue traduzir toda a personalidade de seu excêntrico biografado. Por muito tempo, pensava que Crumb fosse o documentário mais honesto já realizado sobre uma figura controvertida, no caso, o cartunista Robert Crumb, “pai” do Gato Fritz e de outros personagens igualmente desajustados, porque nem ele nem seus familiares se negavam a prestar declarações polêmicas e nem um pouco enaltecedoras a seu respeito. Mas Crumb era um santo perto de Allin. Provavelmente nem em seus delírios mais esquizofrênicos chegaria perto de criar uma realidade tão impactante quanto a que vemos aqui. O que reforça ainda mais o aspecto chocante é que Allin em momento nenhum tenta se defender ou ao menos justificar seus atos. Ele assume o que é e o que faz e pronto. Uma atitude bem hardcore, sem dúvida, bem de acordo com o gênero musical que lhe deu fama, o punk rock, ou, como bem define o irmão do enfocado na última fala do filme, punk suicida.

E ele está certo, a postura de GG no palco e, por extensão, na vida, foi a de um suicida, alguém que não se importava com nada, vivia como achava que devia viver, fazia o que queria (ele mesmo diz isso em outro trecho) e, por isso, despertava a inveja e a raiva das autoridades, simplesmente porque desafiava as convenções estabelecidas. Seria uma postura elogiável se não fosse tão autodestrutiva. O que se vê no documentário são cenas escabrosas, ainda mais assustadoras por não se tratar de ficção: parece inacreditável, mas tudo o que vemos é real.

O filme não enrola e já começa mostrando uma performance de GG Allin em um show, cantando pelado (só se apresentava assim), esmurrando a cabeça repetidas vezes com o microfone – e depois vemos seu rosto ensangüentado e cheio de hematomas – , provocando os espectadores, o que leva à uma briga com o público. A imagem mais nauseante, contudo, mostra Allin enfiando uma banana no ânus de outra pessoa, não dá para saber se homem ou mulher, e ingerindo a fruta em seguida. E é por aí que caminha o filme. Quem não quiser ver cenas similares deve desistir neste momento. Os resistentes, contudo, não irão apenas se espantar com o que vem a seguir; também irão assistir a um dos documentários mais reveladores e impressionantes em termos de construção da figura de seu biografado.


Merle Allin, irmão de GG, uma figura muito esquisita, sempre de óculos escuros pequenos e redondos, calvo, com um discutível bigodinho à Hitler e barba apenas nas laterais do rosto, é quem concede a maior parte das entrevistas, mas revela pouco de sua vida familiar. No máximo, ficamos sabendo que GG gostava de usar roupas femininas no colégio e por isso era perseguido pelos colegas. Tive de ir ao Wikipédia pesquisar mais informações sobre ele e fiquei sabendo que seu nome de batismo era Jesus Christ Allin, conseqüência de uma família ultrarreligiosa de Lancaster, no estado de New Hampshire, onde nasceu em 1956, mas a mãe mudou seu nome para Kevin Michael pouco antes de o garoto entrar para a escola. Vem daí, certamente, o fato de GG dizer repetidas vezes que “era Jesus, Jesus sou eu” em entrevistas gravadas e apresentadas ao longo do filme. Considerando o poder de influência que exercia sobre seus enlouquecidos fãs, pode-se dizer que Allin não estava de todo errado. Mesmo apresentando um comportamento facilmente definível como psicopatia social, ainda assim angariava simpatia por parte de seus seguidores, que apreciavam suas apresentações, para eles, um misto de música e encenação teatral. Um dos depoimentos contidos no filme é o de um rapaz que chega a afirmar que, se Allin se matasse no palco, ele se mataria logo em seguida.

O que importa mesmo são as imagens, cada uma mais crua e chocante que a outra. Não que seja um exercício de sadomasoquismo visual ou exploração da miséria alheia: a opção do diretor foi traduzir em imagens a alma de um, vá lá, artista, mesmo que perturbado, socialmente doente. E é nesse ponto que o documentário se inclui como um dos mais poderosos já feitos. Phillips acompanha a última turnê da banda de GG, os Viciados Assassinos, por diversas cidades, e com isso ganha a chance de flagrar momentos que causam nojo e repulsa. Há dois mais impactantes. Um que mostra uma espécie de palestra na New York University (NYU), em que Allin fala a uma platéia de estudantes, sempre pelado. Primeiro, introduz uma banana no próprio ânus, esfrega e atira os pedaços sobre a assistência, que ri, estarrecida e incrédula. Depois, diz que vai dar um show mas que, para isso, todos deviam tirar a roupa. Os estudantes começam a se retirar, apavorados, enquanto Allin investe contra eles, aparentemente nervoso porque não o levam a sério. Então, passa a arremessar as carteiras na direção dos fugitivos, sendo contido por seguranças. 


Outro momento ainda mais nauseante se passa no dia do aniversário dele, quando recebeu o “presente” arranjado por um fã. GG está deitado no chão, com a boca aberta, sorvendo os jatos de urina que lhe são vertidos por uma mulher; em dado momento, Allin se engasga com a urina e vomita no próprio rosto. Mais deprimente que isso, só a declaração do jovem fã, que conta o fato entre risadinhas e em tom de êxtase, sentindo-se honrado por ter conseguido dar aquele presente a seu ídolo. “Aquilo foi demais!”, diz ele.

Há ainda outro momento em que Allin defeca no palco na frente do público; em seguida, se deita no chão e come as próprias fezes, espalhando o que restou no corpo cortado por cacos de vidro e no rosto ferido pelas microfonadas, enquanto vocifera versos de uma candura exemplar: “Foda-se, seu verme! / Tudo o que tenho é sangue pra você! / Um dia seu fim estará próximo / e eu estarei rindo do seu medo” (este vídeo está disponível no Youtube, mas optei por não inseri-lo aqui, quem tiver interesse e estômago fique à vontade para procurar, mas não diga que não foi avisado). Há letras mais edificantes: “Eu quero matar meus pais e meu irmão. / Quero matar o presidente e os negros também. / Quero matar todo mundo. / Meu temperamento está piorando, tome uma atitude.”

É claro que ninguém é obrigado a aceitar o estilo de vida que GG Allin escolheu para si. É perfeitamente natural que a sociedade estabelecida e com uma mente razoavelmente saudável repudie seu comportamento e prefira fazer de conta que ele não exista. Mas os excessos de Allin servem também para denunciar uma certa hipocrisia que não temos como disfarçar. Ele joga na nossa cara a seguinte verdade: se isso incomoda alguns, é porque vocês não têm coragem de viver intensamente e se mantêm acorrentados aos dogmas escravizantes de uma vidinha medíocre. De certa forma, Allin representa todas as minorias que estão aí, convivendo conosco diariamente, e que fingimos serem invisíveis. 


Como diz precisamente o diretor, em off, quase no fim do filme, para justificar sua simpatia por GG e sua banda: “Eu não sei se ele nasceu assim ou se a sociedade o criou, mas sei que os Viciados Assassinos e seus fãs são demais. Eles representam uma parte da América na qual a maioria das pessoas prefere não pensar.” Afinal, é mais fácil rejeitarmos sua existência do que tentarmos entendê-las como seres humanos como nós, apenas com distinções e características específicas. Se as atitudes e a própria vida de Allin era punk, foi porque ele acreditava que assim estaria representando radical e adequadamente o estilo, que é, na sua essência, um ritmo de protesto contra tudo “o que está aí”, como pregavam seus primeiros representantes.

No dia 27 de junho de 1993, os Viciados Assassinos fizeram sua apresentação mais violenta em Nova York, onde os fãs saíram quebrando tudo após o show. Na saída, a banda foi toda a uma festa na qual GG Allin se excedeu no álcool e nas drogas e então sua missão chegou ao fim. Tinha apenas 36 anos. Uma morte mais que anunciada. Seu velório foi um circo, com fãs tirando fotos de seu corpo nu dentro do caixão, tendo nas mãos inertes uma garrafa de uísque.

Descobri que, apesar de tudo, ele tinha um enorme fã-clube e conseguiu ser bastante popular do seu jeito torto, tinha até boneco! Não acompanho a cena musical, mas imagino que nunca mais houve ou haverá alguém que adote a mesma postura radical de GG Allin. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário