segunda-feira, 23 de abril de 2012

A vingança não tem voz


Abel Ferrara é considerado o mais maldito dos diretores malditos, e isso quem diz são seus próprios pares. O Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) realizou uma retrospectiva de sua carreira, exibindo todos os seus filmes e mais alguns curtas. Uma ótima chance para conhecer ou rever a obra de um cineasta inquietante, que navega pelas águas da produção independente e não costuma fazer concessões em seu trabalho. É meio “ame-o ou deixe-o”. Um dos títulos que foram apresentados foi este Sedução e vingança, segundo filme do diretor, que eu já havia visto há seis anos, em uma sessão perdida na madrugada de algum canal aberto e pude rever agora na tela grande.

O título nacional inventado para Ms. 45 passa uma idéia errada do que é o filme. Não há sedução nenhuma na história, que é pesada, tem cenas desagradáveis e se passa quase inteiramente em ambientes sujos e mal-iluminados. A jovem Thana é muda, mas isso não a impediu de arrumar um emprego em uma prestigiosa confecção em Nova York, onde é muito querida pelas colegas e por seu chefe. Um dia, voltando do supermercado, carregada de compras, é agarrada por um desocupado e arrastada para uma viela, onde é estuprada (quem faz o papel do marginal é o próprio diretor). Mesmo traumatizada, encontra forças para chegar até em casa, no violento e perigoso bairro do Bronx. Enquanto tenta se refazer sentada na cama de seu quarto, eis que o apartamento é invadido e... Thana é estuprada pela segunda vez! Agora, porém, consegue reagir, mata seu atacante e guarda os pedaços de seu corpo na geladeira. Esta segunda violência abala psicologicamente a jovem, que muda de personalidade e passa a levar vida dupla, trabalhando normalmente durante o dia e saindo à noite para caçar e eliminar homens violentos que maltratam e vitimam mulheres, munida de um revólver MS .45 (título original do filme). Sua obsessão pela justiça, contudo, a levará a um desfecho trágico.



O roteiro aproveita o filão do justiceiro urbano, que estava então ainda em moda no começo dos anos 80, impulsionado pelo sucesso dos filmes da série Desejo de matar¸ estrelados por Charles Bronson. De fato, Thana assume sua porção de mulher vingativa em nome de uma causa “nobre” (o extermínio de estupradores, “limpando” com isso a sociedade) e sai fazendo o que considera justiça, ainda que por vias tortas, mediada por uma ética sempre questionável. Mas ninguém vai ver o filme preocupado com questões éticas. A transformação da jovem, de moça indefesa a matadora implacável, é consistente e ganha uma representação simbólica no visual de Thana. No começo, seus cabelos estão soltos, livres para a vida, conferindo-lhe uma aparência romântica e sonhadora; depois que se assume como justiceira, passa a prendê-los, adotando um visual mais sóbrio, como se estivesse mais fechada para o mundo, impondo mais respeito.





Muito da credibilidade do filme é garantida pela atuação sólida de sua protagonista, Zoe Lund, que aparece como Zoe Tamerlis nos créditos e fazia sua estréia em cinema com apenas 19 anos. Sem poder usar a voz para se expressar, é nos olhares e gestos de sua Thana que ela passa toda a sede de vingança da personagem, aliás levando ao extremo a característica dos justiceiros urbanos, de falarem pouco e serem mais eficientes em suas ações do que com as palavras. Ela voltou a trabalhar com Ferrara em 1992, em Vício frenético, apontado como a obra-prima do diretor, e do qual também escreveu o roteiro, assim como o da refilmagem de 2009 com Nicolas Cage repetindo o papel que foi de Harvey Keitel. Fora isso, não fez muita coisa, encerrando a carreira pouco depois, em 1997.

Com Sedução e vingança, Abel Ferrara conseguiu angariar bons elogios da crítica, o que não havia se observado em seu trabalho de estréia em longas-metragens, o terror hardcore O assassino da furadeira, um dos autênticos Midnight Movies dos anos 70, em que explicita o que seria a tônica de boa parte de sua carreira dali em diante. Isso serviu para que seu nome se tornasse mais conhecido e, por tabela, facilitasse sua vida de realizador; no entanto, Ferrara se manteve sempre fiel a sua estética e continuou filmando em esquema independente, dando preferência a histórias menos comerciais e enveredando quase sempre pelo exagero e pelo radical.

Há algumas obras de Ferrara disponíveis em DVD, inclusive O assassino da furadeira, lançado em uma ótima edição pela Aurora, e cujos extras trazem seus primeiros curtas, além de entrevistas e trechos do filme pornô que dirigiu entre um projeto e outro, 9 lives of a Wet Pussy, de 1976, assinado com pseudônimo e que evidentemente ficou de fora da mostra (que preconceito!). Continuamos à espera que alguma distribuidora se interesse e lance este Sedução e vingança, e também Vício frenético, já que ambos só existem em VHS.

  


Nenhum comentário:

Postar um comentário