Um dos filmes brasileiros mais
importantes está completando uma data redonda esta semana. Sua estréia nos
cinemas entrou para a história e serviu como um divisor de águas na produção
nacional. Não se trata de Limite, Deus e o diabo na terra do sol nem Cidade de Deus, embora este último
também esteja chegando a sua primeira década. Falo de Coisas eróticas, de 1982, o primeiro pornô lançado comercialmente no Brasil, e antes que
me acusem de depravado ou idiota por valorizar um filme do gênero, apresso-me a
explicar. Se ainda hoje há preconceito com o nosso cinema, certamente sua
origem está diretamente ligada ao sucesso que aquele filme fez em sua época e
que praticamente definiu um “estilo”.
Talvez hoje, de fato, haja menos
essa percepção. Mas por muitos anos, filme brasileiro era sinônimo de “filme de
mulher pelada”, onde “só tinha sexo e pornografia”. Evidente que tal percepção
serviu para afastar o público das produções nacionais. Mas é inegável que Coisas eróticas marcou um período. Antes cercado de certos pudores, o cinema brasileiro escancarou o sexo explícito nas telas a partir daí, descobrindo um novo filão. Seu lançamento fez explodir a Boca do Lixo, região da
capital paulista em que se concentravam as principais produtoras do cinema de
então, especializadas em filmes de grande apelo e consumo popular. Hoje todo
mundo sabe o que foi a Boca, que tipo de cinema era feito lá e muitos já até
devem ter visto vários títulos – as gerações mais novas podem descobrir um ou
outro título na internet, os mais velhos se lembram, e se algum leitor do blog
quiser, pode contar aqui sua experiência de como era ver um filme daqueles na
sala escura. Eu era pirralho, nem gostava de cinema (só me interessava por
desenhos animados), mas lembro de ver as críticas nos jornais, sempre com a
figura do Bonequinho saindo, com os mesmos termos se repetindo no texto: "produção amadora", "nível rasteiro", "grosseria" etc.
Não vou, aqui, fazer uma análise
detalhada deste filme ou de qualquer outro daquele período. Há bons livros
sobre o assunto, incluindo o recém-lançado Coisas
eróticas – A história jamais contada da primeira vez do cinema nacional, escrito
por Denise Godinho e Hugo Moura, que esmiúça os bastidores daquela produção, conta detalhes das batalhas judiciais travadas pela liberação da obra e casos curiosos, como o de que a modelo do cartaz do filme era, na verdade, um travesti. Mas
quero prestar um tributo àquela época. Muita gente pode querer esquecê-la, ou
fazer de conta que não existiu, alegando que desabonava o cinema brasileiro.
Pode ser, mas a Boca teve sua importância, tanto que em janeiro houve uma
mostra com os títulos mais significativos de então, apresentada no Festival de
Amsterdã. Fico pensando como a platéia holandesa, e de resto os jornalistas do
mundo todo que cobriram e estiveram presentes ao evento, reagiram diante de
tanta tosquice. Imagino que no final o cinema brasileiro tenha saído ganhando,
já que saltamos de coisas como Meu
marido, meu cavalo para obras premiadas no exterior e de inegável qualidade artística, como Mutum, O palhaço e Ônibus 174. Ainda
que à custa de arranhões. Ou seja, saímos da indigência para um patamar elevado
em pouco mais de 20 anos. Feito digno de reconhecimento.
Livros, mostras e difusão pela
internet são mesmo as melhores formas de manter vivo o interesse por esses
filmes, que, na prática, estão condenados ao esquecimento. Muitos foram
lançados em vídeo, cumprindo a lei de reserva de mercado, que obrigava as
locadoras a terem um mínimo de 25% de títulos nacionais em seu acervo. Mas, como
nenhum deles jamais foi digitalizado, a tendência é que se tornem lendas e
sumam na poeira do tempo. A exemplo de tantos outros filmes comuns, mais
antigos, que hoje só são conhecidos pelo nome. Simbolicamente, o
desaparecimento de tais produções representaria também o apagamento de um
período negro do cinema brasileiro, do qual normalmente não se gosta de
lembrar. Mesmo que isso aconteça, contudo, há certas coisas que ninguém
conseguirá esquecer.
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