quinta-feira, 21 de março de 2013

Doce transgressão

Sweet movie (1974)
A primeira impressão é a que fica, diz a sabedoria popular. Isso vale também para o cinema. Quando descobri este Sweet movie, o efeito que teve sobre mim foi tão impactante que até hoje, cerca de 10 anos após tê-lo visto pela primeira e única vez, me lembro de quase todas as suas cenas, alguns diálogos e até algumas musiquinhas entoadas ao longo do filme. Uma impressão inicial que justificou as cinco estrelas que conferi a ele e que traduz muito bem a expressão "experiência cinematográfica” que uso de vez em quando. Posso dizer que ninguém sai ileso depois de assisti-lo, ainda que por duas vias clássicas: ou se ama, ou se odeia.

Dirigido em 1974 por Dusan Makavejev, que mais tarde faria Montenegro - pérolas e porcos, o filme é uma lenda. Anos antes de descobri-lo, lembro de ter lido uma nota rápida em um jornal a respeito do festival de escatologia e absurdos que permeiam a trama. Acontece que o filme nunca havia sido lançado no Brasil até então, o que só aguçou minha curiosidade. Em 2004, saiu em DVD, em uma edição bem limitada por uma distribuidora pequena e já falida, MovieStar, o que me tornou possível tomar conhecimento dessa obra tão controvertida. As polêmicas de fato fazem sentido. Ainda que se aproxime seu quadragésimo aniversário e o mundo tenha mudado bastante, o filme ainda choca, de verdade, embora há quem o ache datado.

O barco: delírio flutuante.
Simplificando ao máximo, a história se passa em 1984 e acompanha duas mulheres: uma jovem, eleita Miss Mundo, e a comandante de um navio de açúcar que atrai os homens com suas idéias revolucionárias e suas canções de guerra. As duas histórias se completam, mas não se cruzam; o conjunto de idéias expostas nos dois segmentos é que faz a unidade do filme. Bom, mas este é só um resumo altamente bem-comportado e que não indica nada. Fácil dizer que na época de seu lançamento, o filme era provavelmente a mais violenta mensagem libertária e anti-inconformista que o cinema já ousara propagar, e tenho para mim que ele manteve seu vigor mesmo após tantos anos. Makavejev, um dos grandes nomes do cinema eslavo, quebra todas as regras existentes, em todos os sentidos. A narrativa é fragmentada, mas bastante compreensível, alegórica, toda envolta em uma infinidade de metáforas e manifestações surreais, nas quais reside muito de sua força. Há basicamente três molas-mestras no filme: sexo, comida e poder. Estes três elementos estão intrinsecamente ligados, e é preciso compreender a profunda ligação existente entre eles, bem como seus significados em um contexto simbólico, para compreender as engrenagens da história. Há toda uma leitura psicanalítica por trás dos excessos. Nada é gratuito, ainda que por vezes as situações possam soar forçadas, sem sentido. Tudo tem uma explicação, camuflada em um complexo jogo de simbolismos e ironias.

O filme é tecnicamente irretocável, desde a inusitada trilha sonora (uma característica dos filmes eslavos, a música é sempre muito alegre, vibrante, dando apoio preciso às cenas) até os detalhes da decoração do navio comandado pela solitária guerrilheira. A criatividade de algumas soluções combina-se adequadamente com a poesia fatalista e melancólica de outras, como em dois momentos antológicos: a mulher embutida dentro da mala e a sedução das crianças pela guerrilheira ao som de música clássica. Cinema em estado puro. Apesar da genialidade de tais seqüências, elas terminam por se constituir em momentos isolados dentro do turbilhão de excessos sexuais e escatológicos que surgem na maior parte do tempo.

Esse delírio visual de Makavejev poderia ser classificado como um “pornô político-escatológico”. Há nudez total e frontal de atores e atrizes, freqüente e abundante. Mas vale o lembrete: o sexo apresentado é destituído de qualquer erotismo. Ao contrário. Não acho que seja fácil ficar excitado com o que se vê na tela, principalmente se levarmos em conta o que foi dito mais atrás, ou seja, a alegoria e o simbolismo das representações suplantam em profundidade as conotações eróticas que a história possa conter. O sexo é usado como arma poderosa no combate à uma sociedade capitalista e acomodada com situações estabelecidas e aceitas em nome de uma pretensa “normalidade” (repare na letra da segunda canção, que cita as alegrias da vida).

Sexo e chocolate: prazer de um e de outro.
Este combate alcança seu momento crucial na longa seqüência do jantar, cerca de 20 minutos ininterruptos, quase no fim do filme. Não dá para descrever para não diminuir o choque, mas, a menos que minha memória me traia, não lembro de ter visto nada parecido no cinema, descontando, obviamente, as bobagens sanguinolentas etiquetadas como "terror" de hoje em dia. Na verdade, encontro um paralelo semelhante no banquete de A comilança, do Marco Ferreri. Mas este aqui supera o delírio gastronômico daquele filme. É uma passagem especialmente perturbadora, insana, doentia, que pode levar os espectadores mais sensíveis a desligarem o aparelho. Não há concessão: ela incomoda, provoca, testa todos os nossos limites. Quem suportar, porém, compreenderá todas as questões propostas pelo filme e entenderá o motivo de tanta polêmica. Saberá também porque o filme virou objeto de culto para um certo tipo de platéia.

Apesar da ironia do título, o filme nada tem de doce ou agradável. E pode mesmo ser amargo ou difícil para muitos espectadores. No entanto, assisti-lo é, de fato, viver uma dessas experiências únicas que o cinema nos proporciona. Abra sua guarda e prove Sweet movie. Pode ser uma delícia.

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