quinta-feira, 20 de junho de 2013

Danúbio-Guanabara, via celulóide

Nas duas últimas semanas, o idioma oficial falado no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) foi o húngaro. A Mostra Geração Praça Moscou trouxe para o Rio de Janeiro 16 filmes produzidos na república magiar entre 2001 e 2012, todos inéditos na cidade. Uma excelente e única oportunidade para conhecer a filmografia daquele país, que raramente dá as caras no Brasil, mesmo em festivais. A seleção incluiu muitos dramas, uma ou outra comédia, espionagem e até um documentário sobre Ferenc Puskas.

Até onde me lembro, só vi dois filmes húngaros até hoje. Um no Festival do Rio do ano passado, Apenas o vento, que posteriormente foi reapresentado em outra mostra na cidade, e O cavalo de Turim, do mais conhecido diretor húngaro da atualidade, Béla Tarr, de perfil mais autoral. Infelizmente, por motivos particulares, não pude ver tanta coisa quanto gostaria. O jeito foi pinçar os títulos que mais me atraíram, pela sinopse, e tentar me iniciar na indústria do cinema da Hungria. 

Aglaja (2012)
O primeiro que vi foi Aglaja (2012), que é baseado em uma história real. O título é o nome da protagonista, uma menina cujos pais são artistas do Gran Circo do Estado, da Romênia, controlado por Nicolae Ceausescu, o pai atuando como palhaço (seria, então, um pailhaço?) e a mãe, trapezista. Eles fogem do país por motivos políticos e se refugiam na Hungria. Logo o pai arruma trabalho em outro circo, enquanto a mãe resolve criar um número até então inédito no meio artístico local: fazer malabarismos pendurada pelos cabelos em um cabo de aço. A façanha é muito arriscada, e ganha contornos dramáticos para Aglaja depois que ela testemunha a morte de outras duas artistas que faziam apresentações parecidas. Mas os problemas da menina ainda nem haviam começado.

Um dia, fiscais da Assistência Social fazem uma revista no circo e descobrem que Aglaja e sua irmã estão fora da escola, limitando-se ao trabalho no picadeiro, o que é proibido pelas leis locais. As duas, então, são separadas da família e recolhidas a um internato. Os anos se passam, Aglaja consegue sair do local, mas já não tem mais para onde ir. Resolve explorar sua veia artística em um cabaré, onde dança seminua para delírio da platéia masculina. Ao descobrir que sua mãe está viva, vai procurá-la. Mais alguns contratempos acontecerão, inclusive uma tragédia, até que Aglaja perceba que sua vida pode ser muito mais do que os limites da lona do circo fazem supor.

A família de Aglaja (à dir.) busca uma vida nova na Hungria. 
Embora as primeiras imagens apontem para um visual lúdico e fantasioso, e haja alguns lances cômicos, o filme é um drama por vezes pesado, que em mãos inábeis se converteria em uma narrativa difícil e lacrimosa. No entanto, a diretora Krisztina Deák sabe trabalhar os elementos do roteiro e consegue dosar o resultado, alcançando um bom equilíbrio entre a descida aos infernos da jovem Aglaja e seus anseios adolescentes - no começo do filme, a personagem tem 5 anos; quando sai do internato, 10 anos se passaram. Apesar disso, opta por um final comercial, quando poderia ter ousado mais, sem que tal ousadia soasse como incoerência.

Ar fresco (2006)
Esse peso que ameaça tornar Aglaja uma experiência desagradável é o que norteia o outro filme que vi, Ar fresco (2006), também dirigido por uma mulher, Agnés Kocsis - mais um pouco e poderiam organizar uma submostra só de filmes húngaros dirigidos por mulheres! Viola trabalha como faxineira de banheiro e sai com homens que conhece ao acaso. Sua filha Angéla é costureira industrial, estuda e tem planos de se tornar uma grande estilista, desenhando modelitos de roupas nos intervalos do trabalho. Ambas só se vêem à noite, quando assistem a séries policiais gravadas no videocassete da sala. Pouco interagem e menos ainda se falam. Levam uma vida que beira a indigência, contentando-se com as migalhas de satisfação que a vida oferece - no caso de Angéla, um namorado e sonhos de um futuro melhor; para Viola, as aulas de dança de salão que freqüenta uma vez por semana. Duas almas que apenas sobrevivem, enquanto a sorte não muda.

O desejo de mudança é simbolizado pelos pequenos gestos que injetam ar fresco em suas vidas. Enquanto Viola espirra desodorante no ar para perfumar um pouco o mau cheiro de seu local de trabalho, Angéla, mal chega em casa, abre todas as janelas, deixando o vento entrar. Cada uma a seu modo, buscam a lufada de esperança que lhes dê algo mais que a satisfação de um dia mal vivido. Mas a vida pode ser muito dura, e os novos ares podem vir carregados de chumbo.

O amor pode levar ar fresco à vida de Angéla.
A opção narrativa conseguida por meio da montagem é fazer com que o espectador se sinta um cúmplice anônimo do cotidiano repetitivo e miserável de mãe e filha, sinta o peso dos dias, das horas, sem que tal imobilidade afete a qualidade do resultado. O filme se desenrola em tom árido, realçando a desesperança dos personagens, sublinhado pela fotografia de tons escuros e a ausência de trilha sonora. Até se torce pelo sucesso de ambas, mas a cena final, que mostra Angéla enquadrada pela porta do banheiro, eternamente presa em um ritual infinito que imita o da mãe, não deixa dúvidas quanto à falta de perspectivas que lhes resta.

Dois bons cartões de visita da filmografia húngara. Deu vontade de assistir e conhecer mais. Em tempo: o nome da mostra homenageia um conhecido ponto turístico de Budapeste, recentemente rebatizado, e foi escolhido pela crítica internacional para designar os novos realizadores magiares, que circularam com destaque no Festival de Cannes de 2010, além de ser também o título do filme mais antigo exibido no evento, de 2001.

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Antes que me acusem de ser alienado por não tecer comentários acerca dos movimentos populares que vêm sacudindo e despertando o país; ou de me refugiar na ilusão escapista das salas de projeção, esclareço. É claro que tenho opinião sobre o tema, e acho fundamental que intelectuais, literatos e supostos formadores de idéias se manifestem e participem da vida pública nacional. Porém, deixo este assunto para os comentaristas políticos. Nunca revelei a ninguém quais são as minhas convicções políticas porque entendo que elas só dizem respeito a mim. Além disso, não quero criar uma cizânia desnecessária externando meus pensamentos sobre tais fatos e correndo o risco de ser mal interpretado ou acusado disso e daquilo. Deixa quieto. Já que as coisas andam tão difíceis no mundo lá fora, que haja uma brecha mínima por onde possamos respirar. Ainda que esse ar que entra tenha cheiro de fritas.

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