quinta-feira, 13 de junho de 2013

Um outro som ao redor

Muita gente pode ter ficado surpresa com a inclusão de O som ao redor na lista dos 10 melhores filmes de 2012 do prestigioso The New York Times. Afinal, como pode um filme brasileiro de perfil autoral, que nem chegou a ser lançado em grande circuito, seduzir a tão severa crítica norte-americana? Mas, para quem já conhecia o trabalho de seu diretor, o pernambucano Kleber Mendonça Filho, o resultado não foi nada inesperado. Surpresa, talvez, foi ele ter alcançado o reconhecimento internacional logo em seu primeiro longa de ficção (seu primeiro filme no formato foi um documentário, Crítico, de 2008), após uma bem-sucedida carreira dirigindo curtas-metragens. Reconhecimento que, pelo visto, por aqui, continua restrito a um público específico, já que, nos cinemas brasileiros, o filme teve menos público do que deveria e poderia.

Em O som ao redor, Kleber simplesmente ampliou suas potencialidades narrativas que já vinham se desenvolvendo ao longo dos anos e já eram perceptíveis desde seu primeiro trabalho, o apenas regular A menina do algodão (2002), que nada mais é do que a transposição para celulóide de uma clássica lenda urbana que corria por sua Recife natal nos anos 70 e depois se espalhou pelo país: estudantes eram atacados nos banheiros e corredores das escolas pela alma de uma menina morta. Mesmo com a fragilidade do argumento, Kleber chamava a atenção pela fotografia e a forma como trabalhava o uso do som, recurso empregado com maestria agora. Esses dois elementos foram fundamentais em seu projeto seguinte, que se constituiu uma pequena obra-prima do horror e da fantasia, dois gêneros historicamente escanteados pela produção nacional. Em Vinil verde (2004), o tom de fábula macabra ganha cores e contornos precisos e o resultado é uma experiência aterrorizante.

Vinil verde (2004)
A exemplo do que fez na estréia, o diretor voltou a trabalhar na adaptação de uma lenda, desta vez uma fábula de origem russa, As luvas verdes. O cenário original foi substituído por Recife, mas isso não faz diferença. Podia se passar em qualquer lugar do mundo: sua essência, como convém ao gênero, permanece intocada, e seu alcance, universal.

Uma mulher presenteia a filha com uma caixa de discos com historinhas infantis, daqueles coloridos, antigos. Mas faz uma ressalva: ela nunca deve escutar o de cor verde. O apelo é reforçado diariamente antes de a mãe sair para trabalhar. Pois é justamente o disco proibido que a menina escolhe para tocar em sua vitrolinha. Dele, emana uma melodia perturbadora: “Nós somos as luvas verdes / e vamos te pegar.” A partir da audição desta misteriosa cantiga, fatos aterradores começam a acontecer, até culminarem em um final inusitado.

O grande mérito do roteiro é fundir dois discursos narrativos em um só, utilizando elementos de criação do universo fantástico (a narrativa de terror tradicional) para construir uma metáfora psicológica sobre um rito de passagem. A gradual desintegração física da mãe representa os anseios de crescimento e o desejo da criança de se desgarrar da figura materna. Mesmo o estranhamento da situação, vista com absurda naturalidade pelo olhar infantil, está bem inserido no contexto moral abarcado pela fábula. Nesse sentido, o jogo proposto pela dicotomia ficção-realidade ganha força, confundindo o espectador e levando a um clima de loucura e tensão crescentes.

A metáfora ganha especial contorno na insistência que a filha demonstra em desobedecer as ordens maternas, primeiro escutando o disco que lhe fora proibido, depois comprando um par de luvas verdes, o que também havia sido desaconselhado pela mãe, que lhe prevenira desse perigo. Chama a atenção também a curiosa inversão de expectativas geradas pela escolha cromática: geralmente associado à esperança, o verde aqui se transfigura na cor diabólica, precedendo tragédias e antecipando o horror.

Tecnicamente, o filme é muito ajudado pela edição sonora, bastante eficiente, que compõe um ambiente altamente sugestivo por meio da própria melodia, que ganhou uma letra assustadora, e de ruídos de um disco empenado, o que ajuda a construir o clima de medo que domina toda a narrativa.

Verde, a cor da esperança? Vocês ainda não ouviram nada!
Privilegiada por uma montagem competente, a história é contada na forma de uma fotonovela, por meio de imagens estáticas, com narração em off. Este recurso, que nem chega a ser especialmente novo no formato, mantém o interesse o tempo todo, deixando o espectador em constante suspense sobre o que virá a seguir. A câmera capta planos inclinados, acentuando a sensação de incômodo. A fotografia, ao mesmo tempo em que realça os ambientes mais iluminados, constrói um absorvente contraste com as imagens mais escurecidas, o que favorece a sugestão de pesadelo que, no fim, percorre toda a narrativa.

Após se provar um legítimo renovador de um gênero tão desgastado e maltratado no cinema de maneira geral, Kleber voltou-se para as neuroses urbanas e as paixões impossíveis, respectivamente, com Eletrodoméstica (2005) e Noite de sexta, manhã de sábado (2007), retornando ao universo fantástico com a criativa ficção científica Recife frio (2009). Com O som ao redor, veio a comprovação de seu talento.

Este e todos os outros curtas de Kleber Mendonça Filho estão disponíveis no Portacurtas, o maior portal brasileiro do formato. Aproveite e faça uma retrospectiva completa de sua obra. 

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