quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Minha vida me pertence

A polêmica do momento é sobre a liberação de publicação de biografias não autorizadas. O assunto vem sendo tratado com a devida seriedade pela imprensa e merece um debate amplo, principalmente por tocar em um ponto fundamental da Constituição brasileira, o direito à privacidade individual. Há quem defenda a tese de que pessoas públicas tais como artistas ou políticos, os principais enfocados nesse gênero literário, não têm exatamente um lado privado, e tudo o que fazem ou já fizeram seria de interesse geral. Outros, ao contrário, dizem que biografias devem se restringir às realizações em suas respectivas áreas de atuação, descartando aspectos da vida pessoal de cada figura, sobretudo aqueles que comprometam a imagem do biografado.

Esse cara não sou eu! Não autorizei...
A gênese da discussão, como todos devem se lembrar, é o livro Roberto Carlos em detalhes, escrito pelo pesquisador Paulo César de Araújo, lançado em 2006. A obra foi recolhida das livrarias pouco tempo após o lançamento e embargada na Justiça. O cantor se disse ofendido porque não concedeu qualquer entrevista ao autor do livro e o considerou invasão de privacidade. Oficialmente, porém, sabe-se que ele não gostou de ter certas intimidades reveladas, como o acidente de que foi vítima quando criança, no Espírito Santo, e que resultou na atrofia de uma perna, fato já muito conhecido por quase todo mundo e facilmente encontrado na internet. Quem conseguiu comprar agora tenta capitalizar em cima da raridade do título. No site da Estante Virtual, até a manhã desta quinta-feira (24/10), havia dez exemplares à venda por preços que variavam entre R$250 e R$500.

O cinema sempre teve nas biografias um porto seguro para produções normalmente atraentes ao público. Então, fiquei pensando se essa suposta proibição se estendesse à sétima arte. No Brasil, vários filmes nunca teriam vindo a lume.

GARRINCHA, ESTRELA SOLITÁRIA - Taí um caso em que o espectador sairia ganhando com a proibição. O filme todo é um equívoco, a começar pelo sacrilégio de escalarem um ator assumidamente flamenguista (André Gonçalves) para viver o eterno ídolo do Botafogo, uma escolha que pareceu provocação. O roteiro prefere sublinhar as estripulias amorosas e sexuais do jogador e pouco se fala de sua carreira nos gramados, tudo é muito rápido e mal contado. Não faz justiça ao estupendo livro que o inspirou, Estrela solitária - Um brasileiro chamado Garrincha, de Ruy Castro, que também enfrentou problemas na época de seu lançamento, chegou a ser censurado pelas filhas do jogador, que o consideraram desrespeitoso e partilhavam um naco maior dos direitos de imagens (depois foi liberado).

NOEL, POETA DA VILA - Outro que se dedica mais a registrar a vida do que a obra do artista, no caso, destacando as conturbadas relações afetivas do grande compositor, quase deixando sua obra genial em segundo plano. O roteiro desigual diverte bastante no começo, a ponto de eu achar que o filme era uma comédia, para depois se tornar sombrio e até triste demais. Rafael Raposo nunca mais fez nada, mas está bem como o personagem título. O som é catastrófico, tornando os diálogos quase incompreensíveis.

LÚCIO FLÁVIO, O PASSAGEIRO DA AGONIA - O Brasil deve ser o único país do mundo que glorifica a bandidagem com filmes! Aqui imortaliza-se o bandido Lúcio Flávio, que aterrorizou o Rio de Janeiro nos anos 70. Destaca-se o bom trabalho de Reginaldo Faria como o marginal. O filme, de 1977, teve uma espécie de continuação três anos depois, com Eu matei Lúcio Flávio, em que se conta a versão "oficial" (da polícia) dos fatos.

2 FILHOS DE FRANCISCO - Um dos maiores sucessos recentes do cinema brasileiro talvez nem fosse realizado. Certo, a narrativa construída em tons épicos confere um natural heroísmo à saga empreendida pela dupla, que termina vencedora graças a seus próprios esforços. mas será que se houvesse algum episódio comprometedor na trajetória dos artistas, isso seria mostrado? 

LULA, O FILHO DO BRASIL - Este é o melhor exemplo do tipo de biografia que se espera que seja lançada no país. Mais que uma história de vida, trata-se da própria construção de um "mito" político, cuja vida parece ter se desenvolvido de forma inteiramente limpa, sem qualquer mancha, quando sabemos que não foi bem assim. Seu sucesso na política seria, portanto, uma conseqüência natural, um "prêmio" a tanto sofrimento enfrentado ao longo dos anos. Hagiografia disfarçada.

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