quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Ouro e maldição

Serra Pelada (2013)
Foi em 1924 que Erich Von Stroheim dirigiu este que é considerado um dos grandes clássicos de todos os tempos, Ouro e maldição. Ao longo de seus 240 minutos (na versão restaurada e mais completa), o filme mostra a degradação moral causada em três pessoas a partir de um prêmio milionário ganho na loteria. Inédita no Brasil por anos, essa obra-prima foi finalmente lançada em DVD há pouco tempo pela Colecione Clássicos, em dois volumes separados para fazer o consumidor gastar dinheiro duas vezes (quando o mais honesto seria uma edição dupla). Quase 90 anos depois, Heitor Dhalia fez uma espécie de homenagem, certamente involuntária, ao clássico de Stroheim com Serra Pelada, em cartaz nos cinemas do país.

Atenção: longe de mim a menor intenção de querer comparar aquele filme com este, ou tentar estabelecer paralelos na composição da trama ou na psicologia dos personagens. Mas foi impossível não me lembrar do magistral trabalho de Stroheim enquanto assistia ao drama com um pé na aventura imaginado por Dahlia e sua esposa Vera Egito, autores do roteiro. Guardadas as devidas distâncias entre um e outro, sobra a mesma degeneração de caráter dos envolvidos nas situações de ambos. No primeiro caso, por um fato consumado; no segundo, pelo delírio de uma fortuna incerta.

Eu era criança quando ouvia falar em Serra Pelada, no começo da década de 80. As gerações mais novas não fazem idéia do frenesi que se causou em parte da população a descoberta de que havia jazidas de ouro em uma região montanhosa do sul do Pará, o que atraiu milhares de homens ao local, todos ávidos pelo sonho da riqueza "fácil" - curiosamente, uma semana antes desta ficção, entrou em cartaz um documentário que trata exatamente do tema, Serra Pelada - A lenda da montanha de ouro. Não deve ter sido coincidência, mas sim estratégia de divulgação, para preparar a platéia. Vale assisti-lo como complemento de programa e para mais informações a respeito. É a partir dali, com a situação devidamente contextualizada, que o espectador pode aproveitar mais a narrativa criada por Dhalia. Fato é que Serra Pelada povoou a imaginação dos brasileiros de então, e foi até parodiada pelos Trapalhões (Os Trapalhões em Serra Pelada, 1984, feito já no fim do ciclo do ouro e considerado por fãs como o melhor trabalho do quarteto).

Juliano e Joaquim: amigos, amigos, ouro à parte.
Em 1980, os amigos Juliano e Joaquim chegam de São Paulo ao eldorado paraense dispostos a fazer fortuna. Joaquim tem um objetivo mais claro: enriquecer o suficiente para conseguir dar uma vida melhor à esposa grávida, já que seu salário de professor não supre todas as lacunas - ou seja, em mais de 30 anos, o Brasil até pode ter crescido em muitos aspectos, mas certas situações nunca mudaram! Ambos descobrem que há uma hierarquia no garimpo, cujo posto mais elevado é o de capitalista, o "dono" dos barrancos de onde é extraído o ouro. Descobrem também que naquele universo onde se respira ambição, ninguém é confiável e as barreiras morais podem ser facilmente transpostas, dependendo das necessidades ou dos interesses. Com o tempo, a degradação moral vai se abatendo sobre os dois homens. Joaquim se vê forçado a deixar seus valores de lado, enquanto Juliano se contamina pela febre do ouro. No que talvez seja uma falha do roteiro, sua origem é desconhecida, assim, não é possível avaliar até que ponto ele se transforma em nome da ambição e da ganância. No começo sempre parceiro de Joaquim, aos poucos Juliano vira o mais selvagem dos capitalistas locais, primeiro disputando cada barranco com os chefes do garimpo, depois se perdendo nos braços da prostituta Teresa.

Sophie Charlotte é a pepita mais cobiçada e valiosa do garimpo.
O filme começa com uma bela imagem: cenas reais do garimpo se sobrepõem na tela enquanto dentro das letras do título que surge aos poucos são projetadas chamadas de abertura do Jornal Nacional da época, tratando do assunto. Outras imagens reais são inseridas ao filme, alternando-se com as tomadas ficcionais. Esse recurso confere maior veracidade à produção, que precisou reproduzir em locações uma estrutura física que já não existe (hoje é um lago). Aliás, toda a parte técnica e visual é exemplar, como a fotografia de tons amarelados, reforçando o aspecto sujo do garimpo. Dhalia volta a impor sua marca cenográfica que se tornou conhecida em Nina e O cheiro do ralo, mas que estava suspensa desde À deriva. Serra Pelada era, então, o grande eldorado nacional, sonho e esperança de milhares de brasileiros, que enxergava ali uma alternativa para mudar de vida. O filme cobre o período em que o garimpo esteve ativo e termina com a marcha pelas Diretas Já, em 1984. O Brasil mudava, e outros sonhos, agora de democracia, vinham povoar a mente da população. 

Escalado inicialmente para viver Juliano, Wagner Moura precisou declinar do convite, por conta de outros
Vista geral de Serra Pelada nos anos 80.
compromissos, mas Dhalia conseguiu encaixá-lo em um papel menor, de um dos capitalistas, em que mesmo assim dá seu show particular, quase irreconhecível por causa de uma calva (ótimo efeito de maquiagem). Seu papel acabou indo para o xará do personagem, Juliano Cazarré, cujas feições brutas acabam sendo mais adequadas ao tipo. Júlio Andrade (que pode ganhar o Oscarito na semana que vem pelo seu Gonzaguinha de
Gonzaga - De pai pra filho) tem outra boa composição como Joaquim, indo da inocência singela do professor disposto a conquistar um sonho à brutalização do garimpeiro na luta pela sobrevivência em um ambiente hostil, enquanto Sophie Charlotte ilumina a tela como Teresa. Além da fotografia e da direção de arte, a trilha sonora divertida é outro atrativo. Há uma cena de humor involuntário, quando Teresa tenta fugir do garimpo e é perseguida pelos capangas de Juliano (com direito a tropeção e tudo). O final é um tanto esticado e abrupto, mas não compromete.

Uma pena que Serra Pelada não esteja indo bem de bilheteria. O filme atraiu, até o momento, menos de 300 mil espectadores às salas de exibição, rendendo bem menos do que se esperava. Sinal preocupante de que o povo brasileiro não está muito interessado em histórias mais elaboradas ou complexas, sobretudo aquelas de tema difícil, preferindo comédias muitas vezes de baixa qualidade. 

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